top of page
  • Foto do escritorVera Felicidade

Enterro de Mãe Stella de Oxóssi

Reconhecimento jurídico de uma realidade religiosa


Mãe Stella de Oxóssi

Mãe Stella de Oxóssi faleceu em Sto. Antônio de Jesus-BA, às 16 hs do dia 27 de dezembro de 2018 e aconteceu uma disputa judicial sobre se o local do enterro deveria ser em Nazaré das Farinhas, interior do Estado da Bahia, onde sua companheira queria enterrá-la, ou em Salvador, a Capital e sede do Ilê Axé Opô Afonjá que ela dirigiu durante 42 anos e que reivindicava o direito de realizar rituais imprescindíveis - e de corpo presente - quando morre alguém pertencente ao Candomblé.


Os Terreiros de Candomblé existem em nossa sociedade e representam dimensões religiosas da cultura africana, consequentemente, têm implicações sócio-políticas que envolvem direitos e reconhecimento da atividade religiosa que os define, os diferencia e geralmente os marginaliza na sociedade. O recurso judicial e a decisão subsequente frente ao impasse quanto ao enterro da Iyalorixá Stella de Oxóssi é um reconhecimento jurídico e um enfrentamento das constantes discriminações raciais às quais são submetidos os negros.


Denunciando em escala mais ampla - Redes Sociais - as discriminações e utilizações sofridas pela figura pública da Iyalorixá Stella de Oxóssi, publiquei em 28.12.2018:


Mãe Stella de Oxossi morreu, uma grande biblioteca de vários volumes desaparece: de Salvador-Bahia à Oyó-Ketu-África, o dia a dia, especificidades e mistérios que ela conhecia, são irreproduzíveis, não têm cópia. Entretanto é fundamental saber que o processo desta morte, deste desaparecimento não se deu ontem. Estamos no mundo, os processos sociais, psicológicos e orgânico-biológicos existem e a todos situam. Mãe Stella há algum tempo está dominada por intensas vivências de senilidade. Resistiu à morte para entrar na categoria dos heróis insepultos - como na tragédia de Antígona - ícones trágicos da nossa civilização. Suas várias mortes esmaecem histórias, mas não são capazes de desfazer memórias. Sua morte é um marco exemplar que caracteriza perdas, passagens e aleatoriedade.


A ideia de enterrá-la em Nazaré das Farinhas-BA, desconectando-a de sua Comunidade, seu Egbe, criou uma série de implicações que descontinuava práticas religiosas, ameaçando a continuidade de rituais religiosos ancestrais, o que viria a se constituir em uma discriminação à religião de origem africana por ela abraçada. Sabendo da liminar expedida pela Justiça, publiquei também no mesmo dia:


Em várias religiões, Judaismo por exemplo, os preparativos para o enterro ultrapassam esferas e determinações familiares. O mesmo acontece nas religiões africanas. Por remanescentes escravocratas se relega as religiões africanas a um plano de seita, consequentemente seus rituais não são respeitados: da proibição dos tambores ao enterro de líderes ser determinado fora do âmbito religioso. Isso é um entendimento social-antropológico que permitiu, inclusive, a decisão da Juiza Caroline Rosa de Almeida Velame Vieira, que determinou que o corpo fosse transferido de Nazaré para o Axé Opô Afonjá em Salvador: Na decisão, a juíza entendeu que: "se deve conceder à comunidade o exercício do culto religioso, ante a supremacia do princípio que aqui seria violado, de forma irreversível, do exercício livre da religião da qual a Iya Stella de Oxossi era líder, bem como a proteção do patrimônio histórico e cultural do exercício da religião de matriz africana”.


- Vera Felicidade de Almeida Campos -





 

Em nota oficial, a COMISSÃO ESPECIAL DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECCIONAL BAHIA (OAB-BA) entende a realização do velório de Mãe Stella de Oxossi como ritual religioso.


Na íntegra:


“A Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa da OAB da Bahia vem a público manifestar seu mais profundo pesar pela morte de Mãe Stella de Oxóssi ocorrida na tarde de ontem, dia 27/12/2018, ao tempo em que se solidariza com familiares, amigos(a), filhas e filhos de santo, toda a comunidade do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, praticantes de religiões afrobrasileiras e admiradores no Brasil e no mundo.


Mãe Stella de Oxóssi formou-se pela Escola de Enfermagem e Saúde Pública e iniciou sua função religiosa em 1976, quando escolhida como quinta iyalorixá da tradicional casa Ilê Axé Opó Afonjá, a qual, sob sua guia, foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1999.


Mãe Stella de Oxóssi transcende a poderosa representatividade religiosa dada a importância sociocultural e política de suas produções literárias e artísticas, tendo ascendido à cadeira 33 na Academia Baiana de Letras, cujo patrono é Castro Alves, bem como por figurar como proeminente ativista e militante de movimentos sociais marcada pela luta pela igualdade racial e reproche ao ódio religioso.


Ciente da existência de litígio judicial em torno do sepultamento de Mãe Stella de Oxóssi, no qual se discute a sua realização em Nazaré das Farinhas, cidade em que vivia nos últimos meses com a sua companheira ou a transferência de seu corpo para Salvador, a fim de promover o cumprimento dos preceitos junto ao Ilê Axé Opô Afonjá, considerando que a sucessão espiritual que culminará na substituição da sacerdotisa prescinde da liturgia que envolve o sepultamento seguida do axexê, sob pena da inviabilização das atividades da casa e realização das obrigações de práxis, manifestamo-nos sobre o impasse instaurado.


A Comissão entende que, diante de toda uma vida dedicada ao Candomblé, mediante entrega voluntária ao sacerdócio, promovendo e defendendo a fé, além da longeva atuação na preservação da religião e da religiosidade como elementos identitários da cultura brasileira, a menos que existe disposição de última vontade (o que é desconhecido) de Mãe Stella de Oxóssi, como testamento ou codicilo, em sentido divergente, ou seja, que aponte a recusa ou negativa do ritual religioso de passagem previsto, dever-se-ia assegurar-lhe a realização, em consonância com o art. 5º, inciso VI da CF no qual verifica a inviolabilidade da “liberdade de crença” e a garantia “na forma da lei a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.


Mãe Stella de Oxóssi faz jus a todas as honras reservadas a uma sacerdotisa de sua grandeza, de acordo com a tradição que durante tantos anos observou, ensinou e conferiu ampla publicidade. Assim, a prima facie, o conjunto de elementos próprios ao cerimonial fúnebre nos termos da profissão de fé da liderança religiosa deve ser rigorosamente respeitado, em consideração à memória e empenho sobre-humano da religiosa em testemunhar da religião de matriz africana de forma sensível e translúcida”.



120 visualizações
bottom of page