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Gestalt, FELICIDADE

Os textos que ilustram a entrevista são extraídos dos dois livros de Vera Felicidade, publicados até então: "Psicoterapia Gestaltista Conceituações" (1973) e "Mudança e Psicoterapia Gestaltista" (1978)


(primeira entrevista sobre Psicoterapia Gestaltista)



Radice - No Fla X Flu das terapias - No aqui-e-agora, todas as velhas formas de repressão à solta - pau nelas com todas as possibilidades de resistências. Sem essa de Fla X Flu!


Vera - A vantagem que eu acho de uma terapia gestaltista é que ela não perde tempo com deslocamentos, não leva um ano incentivando que o indivíduo consiga se aceitar mais ("você é bom, é capaz, trabalhe…") ou ajudando a encarar o sexo de uma maneira mais "normal". A terapia gestaltista vai direto, e às vezes as outras levam muito tempo curtindo, tipo "como faz falta minha mãe…" e leva um ano isso, servindo até pra você ter uma base pra condicionar e racionalizar outros porblemas, o que resulta numa adaptação e num melhor desempenho, mas que lhe desestrutura cada vez mais.


Rádice - Sem papo de cerca-lourenço?


Vera - É, isso vai chegar no papo da alienação. Ninguém melhor que a própria pessoa pra resolver os seus problemas, em termos de sobrevivência! Problemas sociais, arranjar emprego… talvez um conselho, ou que alguém lhe tire alguma mordomia. E essas coisas mal enfocadas é que levam a terapia a um descrédito: "Ah, fulano nunca fez terapia e é isso e aquilo e está bem, o outro faz, faz e não resolve". Foi problema social, foi de sobrevivência. Agora, o problema realmente humano, de estruturas existenciais para ser resolvido, é necessário que haja um confronto com o outro. Mas o outro tem que ser um existente, não pode ser um porta-voz dos valores nem do sistema. Então só funciona uma terapia que disponha realmente de conceitos e entenda o ser humano como um existente e não como um fruto de um processo social de adaptação. Aí o problema pega, e nessa hora vai se incompatibilizar com (já rindo…) sociólogos, quadrados, caretas, todos, todos se incompatibilizarão. Hoje em dia, um dos maiores fatores de repressão é o psicólogo! (Branco geral…). O psicólogo "em geral", que trabalha com qualquer técnica, que se preocupa mais em ajudar do que entender o ser humano. Por que a psicologia tem cem anos (está fazendo agora, psicologia científica, de laboratório etc) e não tem uma metodologia? Porque a proposição do psicólogo foi aquela: "Eu quero ajudar o meu semelhante." Resultado: no que ele quis ajudar, procurou medir, saber as diferenças individuais, tudo com a melhor das intenções - de como ajudar mais. (Explosão de risos…). Mas, ele terminou criando os padrões. Quer coisa mais reacionária que os testes de QI? O sistema se aproveita de tudo…


Então vem essa obsessão em adaptar (agora, um pouco melhor por causa desse movimento alternativo, mas até o início dos anos 70 a preocupação era com a adaptação incongruente). Propondo-se a adaptar, você já parte da idéia de que o homem é como um líquido: você tem que arranjar um vaso onde ele caiba bem; o homem vira água. Então, é muito valorizado quando a pessoa facilmente se adapta… o que é uma coisa negtiva: o facilmente você se adaptar a uma situação, que não tem nada a ver com você, significa uma coisa desastrosa; é você se transformar numa inconsistência geral para se adequar.


E aí, quando o psicólogo vem com aquelas teses de "você tem que se permitir o prazer; você tem que não se policiar tanto; a velhice deve ser considerada; é preciso ajudar o jovem; a criança é o ser do futuro", essa série de estereótipos e chavões muito apelativos te reprimem, criam uma espécie de código ético e moral: "não fica bem eu maltratar um velho porque uma pessoa boa, um ser humano que se preze, não maltrata um velho", "cuidar de bichos é bom"… E por aí os padrões, além de todos os valores existentes…


Rádice - Como é que fica o auto-conhecimento sem ser fazendo referência a todos esses valores?


Vera - O auto-conhecimento enquanto vivência de personalidade é exequível, posicionável. O auto-conhecimento como individualidade depende do relacionamento com o outro, da personalização (o despersonalizado não consegue se conhecer, porque está limitado pelo seu próprio auto-referenciamento, pela sua neurose). Teria que pegar o indivíduo dentro da história dele: ele entender como se sente, o que ele quer, o que ele não é, quais são os problemas… fazer uma visão geral dele próprio. Aí ele começa a entender que 90% do que endossa e acha que é, foi-lhe dado, ele recebeu aquilo sem questionar, socializou, mas sem participar. Daí ele se reconhece através dos padrões e valores que representa e mantém; o que ele conhece são os seus limites vivencados como seu mundo, e aí ele distorce a realidade; e fica difícil, é como o racismo: "eu não sou racista, você não é racista, você, também, não é racista"; a gente não é porque já tem um tal estágio, que não é. Mas numa situação prática, quando você vai afundar mesmo a coisa, começa a sentir coisas lá…





Rádice - Como se você tivesse heranças culturais que permanecem…?


Vera - Padrões tão atávicos e rígidos, no sentido de intrincados, como se tivessem lhe criado, sempre, dentro de uma sala, ou se você vivesse sempre aqui em Salvador e nunca viajasse pra lugar nenhum. É o caso do "Sampa". Caetano define muito bem: "um sonho feliz de cidade", "Narciso". Quer dizer, você tem na sua cabeça uma idéia. Não é que você não aceite outra, é que a outra nunca pinta, e quando pintar, vai pintar como algo estranho. Então, você tem que ser bem disponível pra englobar esse estranho; senão, esse estranho bate e você até contempla ele e… "não", "legal, mas é algo além de mim", ou "… destacado de mim"…


Rádice - Você até saca, mas não entra nele…


Vera - Mas não entra. Mil pessoas vão a São Paulo, feito o Caetano, sentem o que ele sentiu, mas, e daí? "Cidade Industrial", "não é Rio de Janeiro", ou "São Paulo é assim"… O Caetano de repente pegou aquilo que sentiu e fez uma trança com a coisa, entendeu? Ele sentiu porque ele sentiu, porque ele não sentiu, e o que ele está sentindo.  Esse momento reflexivo é exatamente o que dá a dinâmica e o que faz você sair do auto-referenciamento. Você sentir o que é antítese, diferença, você vai como se fosse ser, não sendo. É esse lance, é você ir, ver que não-tem-nada-a-ver, mas entender porque não tem, porque poderia ter, e saber como não está tendo. E ter ou não ter, aí já não faz diferença. O problema de ter, não ter, adotar, não adotar, não interessa muito. Você é uma possibilidade dentro de um mundo…


Rádice - O terapeuta, cuidando do problema, não é uma manutenção?


Vera - Não, o problema em si é dinâmico. Quando começa o cuidar de um problema… apertando… ele se desloca pra uma outra área. Ele tem uma dinâmica própria: você vai vendo uma coisa; o indivíduo, pra escapar daquela coisa que em si já não é uma adaptação, já mostra outro negócio; você já aperta o outro. De repente, ele não consegue mais ficar adaptado e também não consegue não ficar adaptado. Aí vem uma divisão, como se ele começasse a ficar em dois espaços, duas estruturas: uma estrutura de ser e uma de não ser. E aí a habilidade da terapia é fazer isso entrar em choque cada vez mais e fazer uma síntese, pra pelo menos ele acompahar esse seu processo. E isso é tão dinâmico, é tão rápido e dá tanta coisa, que não dá pra manter, como na psicanálise, em que você precisa animar pra uma determinada conduta pra ouvir uma explicação. Agora, às vezes, calha de o indivíduo instrumentalizar a terapia, né?


Rádice - Você tá identificando os problemas pra criar uma situação de desmascaramento do problema, né?


Vera - É… no fundo o objetivo é aquele antigo mesmo, o auto-conhecimento. É você se conhecer nas suas situações problemáticas e no como resolvê-las. Não é que você não vai ter problemas nunca, mas vai ter condições de resolvê-los.


Rádice - Legal essa do auto-conhecimento…


Vera - Isso é o que liga com a parte existencial, que vai permitir ao homem dizer não à massificação. O objetivo primeiro das religiões, da astrologia, de toda a filosofia - você se conhecer - atualmente é através das posições "como eu tenho tal profissão, tal renda…", "então você é um cidadão classe A, ou dos 700 do Imposto de Renda…" Você é conhecido por código, você é em referência a alguma coisa. Para ser em referência a você próprio, tem que destransar tudo para chegar aí.


Rádice - E o problema da manutenção?


Vera - É sério. É a sua cuca, é mais um padrão social, é mais um tempo, é tudo pedindo pra você manter. E você só pode ser você mesmo, só pode viver seriamente, não mantendo. Então, alguém me dizer: "Tô muito satisfeita, porque estou adaptada, estou com emprego, com isso, com aquilo…" E o vazio aí no meio? E o existencial, onde fica? Mas ninguém se preocupa, que "é tão difícil conseguir…". Quando chega na terapia, chega com um problema: forma sexual é o mais frequente e o que mais incomoda, porque com os outros problemas vão dando jeitinho, enquanto têm dor de cabeça vão dando jeitinho. No dia em que o homem fica impotente…


Rádice - Pomadinha japonesa não resolve…


Vera - … e tenta isso e tenta aquilo, ele não aguenta e vai mesmo. O problema da impotência a gente consegue resolver em quatro ou cinco sessões, porque é sempre um sintoma de desestruturação ou de não aceitação. Como aquele caso de manter problema, lembra? Cura porque o indivíduo entende que é o sintoma, a febre. A infecção é que precisa ser tratada e aí demora. Assim, uma mulher com problema de frigidez: ela entende, melhora, fica boa, mas é aquele negócio de não aceitação, é o medo e pra resolver ela tem que… largar o marido. Pra largar o marido ela tem que ganhar dinheiro, ter uma profissão e às vezes é o próprio marido que está pagando a terapia. O terapeuta até tenta dar opções, mas a coisa fica meio caricaturada.


Radice - (Relendo Vera) "O amor como aceitação total do outro é equivalente à terapia." Como é que pinta isso?


Vera - Como é que a terapia vai curar? O indivíduo está curado quando ele se aceita. Ele vai se aceitar através do relacionamento com um outro. Esse outro não pode estar posicionado em padrões nem interesses nem conveniências, porque senão ele começa a trabalhar o outro em função dele. O relacionamento com o terapeuta na terapia, facilita isso. Agora, no caso de duas pessoas: uma desestruturada, com problema, se a outra é autêntica e disponível, se aceita, ela tem condição - dentro da estrutura que ela tem e à medida em que ela aceita o outro, por essa relação de amor - de transformar o outro.


Rádice - A essência dessa transformação é você perceber que está sendo aceito, perceber que está sendo amado? Na terapia o cara começa a perceber alguma forma de aceitação autêntica e quando ele tá sendo amado também percebe uma forma autêntica de aceitação?


Vera - É. E aí ele muda.


Rádice - Mas ele mudará só em relação àquela pessoa que ama?


Vera - Não. Ele muda em relação a ele mesmo, à percepção dele e começa a se aceitar; e, no que muda em relação a ele próprio, através daquela pessoa, muda em relação a tudo.


José Luiz Thadeu & Vera Felicidade

Rádice - (Juquinha) Esse negócio de se perceber aceito, ou se perceber amado é sutil paca, heim…? Parace gozação, mas, como é que pinta isso?


Vera - É sutil e é fácil; quando você começa a sentir que o outro não é um limite, não é um obstáculo às suas vontades. Aí você vai sentindo uma liberdade, vai perdendo a imagem, o faz-de-conta, todas aquelas formas gastas: "fulano me aceita se eu fizer isso", aí você faz e o fulano não lhe aceita, e exatamente aquilo que ele aceita é a coisa que você nunca faz… porque tem vergonha, porque acha feio… Entendeu? Você vai ficando mais liberado, vai ficando mais você mesmo, deixa de agir através do artifício.


Rádice - Isso tudo tem alguma coisa a ver com monogamia?


Vera- Não. É que, dentro da massificação, o amor é visto como um preenchimento de determinados papéis.


Rádice - é, a palavra AMOR fica, até, meio sem significado…


Vera - O AMOR seria disponibilidade, disponibilidade e aceitação.


Rádice - Quando você falou de não perceber o outro como limite, começou a ficar claro…


Vera - É como na terapia, quando você deixa de perceber o terapeuta como aprovador/desaprovador, autoridade, apoio e comoça a ver como uma pessoa que tem um conhecimento que lhe revela, que lhe descobre, então você se encontra num outro nível, que não é mais o seu e não é também o da terapia: é o nível que aquela relação você-terapia lhe levou. E no amor seria mais ou menos o seguinte: a pessoa, também com todos os grilos, com todos os problemas, mas através daquele outro, consegue chegar a um nível onde ela se vê como era antes, como ela é. A aceitação seria, assim, como se fosse uma viagem - tanto na terapia como no amor: a pessoa entrou numa outra dimensão. É quando ela percebe que é aceita não pelo que faz e sim pelo que é. E o que ela é, no fundo, é imutável, e esse imutável ela esconde com o fazer ou ter. Então, ela começa a desenvolver esse potencial que estava parado: ao invés de alimentar o que cobre, passa a explicitar o que é. Aí ela dinamiza tudo.


Rádice - (Juquinha) Será que a pessoa percebe mesmo isso, heim? Percebe que esta sendo amado… tem a sacação: "Hi! estou me aceitando… Hi! tô mudando… porque tô sendo amado…". será que a pessoa percebe isso?


Vera - Percebe - Mas aí volta o negócio do auto-conhecimento. Ele percebe dentro dos referenciais neuróticos. Aí é que há marchas e contramarchas. Começa a utilizar a pessoa que ama, como uma ponte, um apoio. Aí começam todos os horrores, entendeu? De repente, você que ama, vira também um instrumento para a pessoa conseguir as coisas que não consegue ou pra aplacar as coisas de que tem medo.


Rádice - Mas, aí, seria um retrocesso…


Vera - É. Mas geralmente acontece isso porque a disponibilidade não é tão poderosa a ponto de neutralizar todas as coisas. Você tem de imaginar que nisso tem grilos e mais grilos, problemas e mais problemas, desestruturação e desestruturação… O amor é força polarizante, no que polariza abre, mas às vezes o indivíduo passa a ficar sensível a demandas a que, por fechamento, ele não era.


Rádice - AMOR & TERAPIA não são "Atalaia-Jurubeba-cura-tudo"…


Vera - Num determinado ponto não. Agora, é, se for até o final… Tem que completar o processo, porque há fases negras tanto na terapia como na relação de amor. Não é assim: AMOR & PRONTO! A relação depende das duas partes, se um afeta o outro, o outro afeta o um. É preciso que se esteja realmente disponível e estruturado pra conseguir… amortercer… os choques da abertura (rindo…) do outro… e dar uma dinâmica e sair pra um momento onde não há mais uma relação, mas sim uma integração, em que as duas pessoas viraram uma só parte. A explicação, em termos de estrutura, seria isso. Agora, o funcionamento está sujeito a mil peripécias e grilos. Daí entra o amor como uma colocação existencial: uma aventura de vida. A chave da existência mesmo é aceitar, ser disponível, correr o risco e ter essa aventura.


Rádice - Agora você se fixou muito em UMA PESSOA & OUTRA PESSOA. Isso não está exluíndo o caso de várias pessoas para estar acontecendo, não? Ou você está fixando apenas relação de duas pessoas e apenas duas…?


Vera - DUAS, porque no… o amor… Aí o negócio é meio monogâmico mesmo, entendeu?


Rádice - (Juquinha ataca outra vez…) Porquê?


Vera - Se você está amando uma pessoa, toda a sua disponibilidade está aí. Quando ela fica dispersa… é a mesma coisa de… não se pode fazer terapia em grupo… você pode estruturar uma atmosfera de amor em grupo, mas não é aquele AMOOOR, em que as individualidades se transferem…


Rádice - (Juquinha) Mas, quando tem três ou cinco pessoas, todas disponíveis: quando o "solzinho" de uma encontra o "solzinho" da outra, e o da outra… e o da outra…


Vera - Quantitativamente sim, mas qualitativamente é formado por setores diferentes.


Rádice - (Juquinha) Não é limitação da cultura da gente, não? Heranças monogâmicas de nossa cultura?


Vera - Não. Se você pensar uma relação cultural - ou outra qualquer que não uma de amor - você sempre está assim, como os "sóiszinhos". Então por que a relação de amor também não poderia ser assim? Ela pode ser assim, mas então ela deixa de ser uma relação-de-amor.


Rádice - (Juquinha, de novo) Então, a palavra AMOR é que tem uma herança cultural que significa "um pro outro e o outro pro um e somente isso"? Mas pode ser como você conceitua o conflito: só acontece num determinado momento, e então, naquele momento, vira tudo, mas… naquele momento?


Vera - Não, porque, quando chegasse a esse amor-perfeito, deixaria de ter um indivíduo A e um indivíduo B, passaria a ter uma Gestalt AB. As duas pessoas se fundem numa só e nesse sentido o amor seria o "duplo", se criou uma nova estrutura AB, e as estruturas não desaparecem por encanto. Se fosse: "você constrói um momento de amor, e uma pessoa tem disponibilidade pra caminhar pra esse momento e outra também, e, de repente, cria-se o instante AB… seria uma coisa temporal, e não espacial & temporal de um novo "ser" AB. é porisso que a "poligamia" não poderia caber aqui. O questionamento que poderia entrar - e provavelmente, com o desenvolvimento da humanidade, ele vai entrar - é se nesse critério de amor disponível e totalizante, quando você consegue o seu "duplo", quando eu consigo o meu "duplo", eu tenha me despersonalizado, me alienado. Porque esse modo ideal de relacionameto é quase igual ao ideal do Nirvana, é o nível do não-eu. Mas, quando o homem chegar a questioná-lo, ou questionar o Nirvana, já vai estar tão evoluído que vai ver coisas incríveis…


Rádice - E um caso de uma pessoa ter sido amada por uma outra mas não entendeu tudo, aí foi amada por outra, e por outra… e, aí… na quinta vez que aconteceu ser amado, ele até consegue uma relação total de amor, porque ele foi estruturando, estruturando… de repente, aquela última pessoa consegue uma estruturação total…?


Vera - Aí, entraria uma linguagem tipo aprendizado, e o amor é mais um estado que se atinge. A quinta pessoa não se beneficia nem se prejudica de nada das outras, é um movimento mesmo de amor, é uma coisa completamente nova. Quando ela é um fechamento de tudo que veio antes, é aquela do "know-how": "machão", "mulher fatal" - uma institucionalização. Porque a coisa só fica quando ela é total, é 100%; se ela atinge 99%, a pessoa tem mais possibilidade de desestruturação que de estruturação.


Rádice - Fazer doze pontos na loteria…


Vera - É como na terapia: resolveu problema de sexo, de trabalho, já conseguiu não-sei-que-lá, mas na realidade, em cada sessão ele está a zero. A coisa não é cumulativa, não soma. Existencialmente nada soma. Você está por aí… de repente, vai se posicionando, se encaixando, ou concedendo, se satisfazendo, se realizando, ou se perdendo… através de coisas, pessoas… passa a vida nisso, até que atinge um ponto, uma posição, uma profissão, um casamento… Mas, aquela descoberta, a transformação, tem que ser dada por um outro, um outro que vá lá dentro, entendeu?


Rádice - Entendeu…


Vera - Encontra uma pessoa que, ao invés de tirar por cima, vai tirar de dentro. Então, quando você vê, está transformada dentro, aí explodem as cascas, as aderências…


Rádice - Explodem os personagens e fica o ator, né? (Tava doido pra dizer isso…)


Vera - É, caem as cascas, fica a semente. Em terapia se faz isso e também numa relação de amor se faria.


Rádice - Qual o referencial pra saber se não se está massificando?


Vera - Pergunta difícil essa, porque você & os outros, você & o contexto, na realidade já é uma situação de confronto, você já está numa posição ilhada, ou isolada. É preciso que você conheça os valores, mas que tenha relação dinâmica com o referencial que esteja dentro do dentro, dentro do tempo, pra ter condições de emergência. E o problema vai aparecer nas condições de aderência, de colagens: não basta você, com a situação vigente, dizer não a uma série de coisas: você consegue a marginalização, fica sediado por um referencial. É aquele erro de transar contra-cultura: toda a definição da contra-cultura precisava da cultura vigente. Por que o movimento hippie não conseguiu ter uma estrutura que o fizesse ser ele mesmo? Porque ele foi definindo uma posição dentro do sistema. Tinha ideais e proposições ultra válidas - todas tiradas do sistema que ele negava. Então, tá comprometido; se compromete pelo sim e se compromete pelo não.


Rádice - Acaba fazendo o jogo, né?


Vera - O jogo. "O que oprime, apóia." Na luta de classes, o patrão que explora é o patrão que sustenta. A greve é uma maneira de você romper com a coisa até certo ponto, porque é tal o limite de barganha e de conchavo que, quando você ganha uma greve, você engorda o capital: você consegue aumento de salário, mas o custo vai ser jogado, vai ser diluído. Atualmente, você dizer não à exploração termina sendo dizer sim, já que você não muda as estruturas limitadoras, alienantes. Pega a temática de uma pessoa, por exemplo, um relacionamento que não lhe agrada. Ela diz pro marido: "Não, eu não vou viver mais assim, o papel de mulher… você na sua, eu em casa…" Mas, no fundo, ela precisa de uma concordância. Outro problema, homosexualismo/heterossexualismo. Hoje em dia, há uma grande liberação em termos do homossexualismo, mas é uma liberação dada por uma sociedade heterosexual.



Rádice - O fator econômico…


Vera - Dentro de uma visão geral, o fundamental é o econômico. Mas, aí, é unicamente uma visão do ser humano como sobrevivente. Quando entra o ser humano como existente, como individualidade, o fator econômico é detalhe.


Rádice - É, a autoridade precede o fator econômico…


Vera - O fator econômico surge com a propriedade privada… Pela própria gênese do ser humano, antes de você lidar com relação de trabalho você lida com relação de família, de autoridade. Antes de o econômico ser fundamental, quem lhe dá acesso ao econômico é sempre quem detém o poder.


Rádice - Existiria a possibilidade de uma sociedade não neurótica?


Vera - Haveria. A neurose, hoje em dia, poderia ser sinônimo de massificação; então, as pessoas ontem seriam menos neuróticas porque eram menos massificadas. Se se admitir neurose como despersonalização, é igual em qualquer época. Se se admitir como repressão sexual, a humanidade, hoje em dia, não tem neurose. Num sentido universal, "neurose é distorção perceptiva", e essa distorção, agora, é engendrada principalmente pela massificação; antigamente, não tinha "aldeia global", havia lugar para regionalismos, clãs… E se eu escrever um terceiro livro vou entrar no problema social com mais ênfase; iria falar na psicologia como fator de repressão, o próprio conceito de personalidade, já está muito desgastado com toda a conotação do social. Seria um livro sobre "individualidade-personalidade", pra deixar bem claro o indivíduo saindo do social.


Rádice - Saindo no sentido de o indivíduo cair fora?


Vera - Não. Mostrando outra dimensão que ele tem, pra mostrar bem o que é a sociedade, a sociedade como prisão, como valor, como massificação, como alienação. Psicologia como uma coisa que já entrou dentro disso. Analisar bem toda a coisa e retomá-la. Porque, nos outros dois livros, fica quase que didático a gente falar de Ser Biológico-Social-Existencial, e só se pensa mesmo é no social.


Rádice, Vera, todo mundo - discussão generalizada… Altos papos de coletivo/individual/político/participativo/vivendo… Impossível reproduzir porque o gravador pifou.



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