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Gestalt Terapia - a neurose sob nova ótica



- por Valdemir Santana -


Ao introduzir no Brasil o método alemão da teoria gestaltista, a psicóloga baiana Vera Felicidade de Almeida Campos criou uma terapia em que o ideal não é ajustar o homem a um mundo pré-estabelecido, mas considerar o homem no mundo com os outros, aqui e agora. Ou seja, o homem precisa se conhecer, se unificar e a partir daí se relacionar com o mundo sem conflitos. Postura que joga por terra, por exemplo, teorias como a do consciente ou inconsciente para determinar os conflitos e ações humanas, conforme foi preconizada pelo austríaco Sigmund Freud e até hoje seguida pela psicanálise ortodoxa.


Correio da Bahia: Como psicóloga, a senhora foi responsável pela introdução da Gestalt no Brasil. Qual é exatamente o trabalho de terapia que a senhora desenvolve baseado na Gestalt?


Vera Felicidade: A ideia básica é conhecer o homem como um todo, questionando e respondendo sobre a sua gênese. Não procurar ajustá-lo a determinados papéis, mas sim, procurar transformar o que está neutralizando-o, o que está transformando-o. É uma forma de chegar à unidade. Dessa maneira eu transpus para a parte clínica os estudos sobre a percepção, baseada em que: eu sou o que percebo e o que vem mudando a minha percepção, muda o meu comportamento. Para dar uma ideia, eu posso citar aquela história, relatada por Koffka, do homem que chegou à cabana e desmaiou quando soube que havia atravessado um lago gelado. Ou seja, ele andou tranquilo o tempo inteiro, pensando que pisava sobre gelo firme e teve a reação depois, quando soube que ele tinha atravessado o lago Constanza e que era um gelo que poderia se quebrar. Isso mostra como o aparente é o real e como a gente se transforma quando percebe. Então, dentro dessa ideia de percepção, eu trouxe os estudos para a parte clínica, baseada em que a neurose é uma distorção perceptiva. Logo, o indivíduo precisa chegar à unidade para que não haja a distorção. E para que haja a unidade é preciso chegar à individualização. Se não há a individualização ele pode, por exemplo, viver grandes felicidades, grandes amores, mas sempre uma coisa descontínua, pois falta a individualidade.


C.B.: E como chegar à individualidade?


V.F.: A individualidade vem no decorrer da terapia através da integração da realidade do estar no mundo, suas mediações e questionamentos. Através da distorção perceptiva ele chega a uma fragmentação, tendo, por autorreferenciamento, determinados padrões: valor, medo, compromisso, expectativas, omissões etc. Nessa distorção, tem a visão do mundo sempre dentro de um referencial, sem a globalização. Aí chega num ponto em que os padrões não aguentam e ele tem uma crise.


C.B.: Aí ele procura a terapia...


V.F.: Ele vai para a terapia ou não. A terapia vem a ser a erradicação dos sintomas, o que é muito rápido, pode ser conseguido em umas quatro semanas. A erradicação dos sintomas é rápida, mas o processo de estruturação é demorado. Isto é, a unificação para se conseguir a individualidade é demorada porque vai depender da neutralização de todas as forças antitéticas que são as forças de atrito. No momento da estruturação, a família, o sistema, o trabalho, as ideias, as ideologias, tudo é força de atrito. Por exemplo, não há nada que aliene mais do que a família, ou uma ideologia. Então o indivíduo sairia da sua condição de resultante de processos metabólicos orgânico e/ou sociais e passaria a se assumir como existente no mundo, que estabelece relações, constituindo-as e constituindo-se através delas. A grande verdade dialética, fenomenológica, gestaltista é que o ser humano é um mediador de N processos e quando se escleroasa numa posição de emissor ou receptor, se nega como possibilidade de realização, transformando-se em necessidades contingentes, circunstanciadas, passando a ser representante de padrões, ajustes, papéis, massificando-se e neurotizando-se, portanto. É aí que ele vira a matéria-prima que vai ser manipulada pelas ideologias, pelo sistema. Qualquer situação que não considere a individualidade, aliena; qualquer poder que ultrapasse a realidade, aliena.


C.B.: Como será, então, o comportamento para se chegar naturalmente à individualidade, sem a terapia?


V.F.: Dificilmente chega. A ideia é mais ou menos assim: quando você nasce, você é um organismo. Você nasce no mundo. E aí vêm todas as teorias para explicar esse fenômeno. No funcionalismo tem o homem e o mundo. Quer dizer, o homem passa por um processo de adaptação. É o conceito de Spence, de Dilthey, de W.James, que advogam essa tese de que organismo e mundo estão em uma interrelação e precisam de adaptação. No behaviorismo, é o homem do mundo: o homem vai ser tal qual o mundo tenha estimulado, condicionado por estímulos e através desses estímulos fazer isso ou aquilo. Na psicanálise é o homem versus mundo, ou seja, o homem institivo, cheio de libido, de desejos, anseios e aspirações, mas que encontra um mundo que reprime, que questiona. Já para a Gestalt, o homem está no mundo. Ele se relaciona com o mundo, uma relação de temporalidade e ocupação de espaço no mundo. O espaço está transcendido enquanto relação com o outro, que o constitui, dinamiza e temporaliza.


C.B.: Em síntese, a terapia gestaltista focaliza o homem no aqui e agora, correto? pois bem, isso invalidaria qualquer tipo de herança que o homem traz consigo?


V.F.: Quando a gente fala em herança, se refere àquela coisa biológica, você se refere, então, a experiências passadas. Essas experiências passadas funcionam na terapia gestaltista como a priori, como referências distorcidas e parcializantes da realidade.


C.B.: E o subconsciente?


V.F.: O subconsciente não existe. Nem o consciente. Essa postulação freudiana é metafísica, subsidiada na ideia de que a coisa em si não pode ser conhecida exatamente por ela própria, mas através de categorias que a configure. Em outras palavras, o homem como homem não pode ser conhecido enquanto ele mesmo, mas sim através de um referencial que o catalogue, que o explique, no caso o inconsciente. Sendo o gestaltismo uma psicoterapia fundamentada na fenomenologia (Husserl), o que existe se evidencia, dispensando categorias pré-existentes e explicativas. Só assim se pode fazer ciência. Inclusive um dos males da psicologia reside nessas crenças dualistas; o inconsciente, reflexo...


C.B.: Qual a postura do terapeuta na Gestalt? Ele assume aquela condição de eleito para o conhecimento psicológico, estabelecendo um distanciamento de quem sabe os caminhos para o paciente, ou, a partir de sua condição de ser estruturado deixa que o paciente perceba que os caminhos podem ser encontrados por ele próprio?


V.F.: Ele estabelece mais questionamentos, desmancarando mais do que provando, ensinando. A psicologia é uma ciência, a terapia fica mais como técnica. Você quando vai construir uma casa não quer saber se o engenheiro é isso ou aquilo. É como o relacionamento com o médico. O terapeuta não faz a cabeça de ninguém, quem faz a cabeça é a relaidade. A gente tem condições de mostrar a realidade como ela é, e não ficar como um guru, um mágico, e sim, como a pessoa que tem um conhecimento global e fica ali questionando.


C.B: Pode haver um envolvimento do paciente com o terapeuta na Gestalt?


V.F.: Surgem ligações pela terapia quando através do mecanismo de neurose ele inclui o terapeuta em suas colocações existenciais de estar no mundo.


C.B.: E quanto à influência social da terapia? ou seja, a influência que ela pode ter a partir das pessoas que são tratadas, levando em conta principalmente que quem procura o terapeuta são representantes de uma classe privilegiada. Uma classe que tem mais acesso às decisões do poder, ou que está dentro dele.


V.F.: Na terapia o indivíduo vai ser como ele é, se aceitar como ele é, sem questionamentos valorativos que deem origem à transformação. Se chega uma pessoa e diz assim: 'eu quero ser um ladrão, mas me sinto mal em ser isso', o que acontece é que ele quer ser um ladrão dentro de um estado de neurose, se vai para a terapia, muda sua concepção de vida. Na realidade ele tem de fazer a sua trajetória no mundo, isto é, a sua dinâmica e o seu movimento. Se por acaso algo detém essa trajetória e ele dá sorte, vai encontrar outro disponível ou uma terapia gestaltista que o dinamizará e o estruturará. Dando azar, encontrará padrões, sistemas e amigos que o justificarão e explicarão que a vida é assim mesmo.

A Psicologia da Forma ou os estudos de percepção iniciados na Alemanha com a Gestalt Theory ganharam notoriedade e ampla divulgação nos Estados Unidos nas duas últimas décadas, sobretudo com as publicações de Federick Perls, ou Fritz Perls, sobre Gestalt. Para os críticos, a Gestalt americana, no entanto, não aprofundou os estudos alemães, pelo contrário, reduziu tudo a uma simples constatação de que 'o todo não é a soma das partes'.


Vera Felicidade de Almeida Campos, baiana de Salvador, estudou psicologia no Rio, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde em 1973 publicou o Psicoterapia Gestaltista - Conceituações, edição esgotada, em que, além de introduzir o gestaltismo no Brasil, mostra a transposição dos estudos da percepção para o campo clínico.


De volta à Bahia, onde instala sua clínica de terapia gestaltista, primeiro na paradisíaca praia de Buraquinho e atualmente na Pituba, ela retorna a publicações sobre o assunto, dessa vez com o Mudança e Psicoterapia Gestaltista, editado em 1978, onde aprofunda a parte prática dos conceitos acerca do homem e sua natureza.


Ao abordar a neurose sob nova ótica, neste segundo livro, Vera Felicidade fala da mudança e sua continuidade como peças fundamentais para o relacionamento do homem com o mundo: "Só com a percepção do movimento é possível acabar com dualismos do tipo permanência versus mudança, muito ao gosto da filosofia idealista e da psicologia elementarista. Estar no mundo aberto a todas as possibilidades sem estar ancorado na inércia das necessidades é a vivencia do homem estruturado, livre".


E mais adiante preconiza que "a necessidade de sobreviver, o relacionamento com o outro e as relações sociais institucionalizadas são fenômenos universais, independem de cultura, época e governos, são intrínsecos ao homem e às sociedades por ele constituídas. À psicologia, enquanto ciência do comportamento humano, interessa saber como este intrínseco é assumido, como ele é distorcido, o quanto ele autodetermina e como esmaga, aliena, desindividualiza o ser humano".

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