Quando começamos a relacionar totalidades criamos níveis de visualização. É como se fosse a visualização de uma paisagem: areia, pedra, mar, ondas, horizonte, nuvens, pessoas que passam.
A não percepção desses níveis é responsável por um anseio de globalização criador de unilateralizações. Perceber totalidades sem globalizá-las é tão elementar quanto o associacionismo. Nesse sentido, a visão holista é também elementarista, pois supõe um todo, uma totalidade e cata exemplos, amealha experiências para atinagir o todo postulado. Em 1912, Koehler, Koffka e Wertheimer, gestaltistas, não aceitaram ser considerados holistas pois diziam que o todo é uma gestalt estruturada e configurativa e não uma emergência. O todo não é uma resultante, ele é uma unidade configurativa que, só quando apreendida globalmente, totaliza-se. Holismo hoje em dia é sinônimo de todo como soma de partes. O elementarismo da atitude holista operacionalizou e instrumentalizou tanto a ideia de todo, de totalidade, que se desmascarou. Vemos em astrologia, em psicologia, em medicina, os desastres da atitude elementarista-associacionista: "Você é um indivíduo formado pela sua educação, sua cultura, suas vivências, seus símbolos, sua lenda pessoal e suas funções marcianas, plutonianas, netunianas etc." ou ainda "seu organismo é uma totalidade que resulta de sua alimentação, suas idiossincrasias, sua constituição genética etc.". Holos em grego é um adjetivo ou um advérbio, é uma maneira, um modo. Os holistas utilizaram o todo como advérbio. Na gestalt, o todo é o adjetivo que expressa a forma perceptiva parcializada distorcidamente ou globalizada sem distorção. Isso explica, por exemplo, as ideias causalistas, deterministas e dualistas. Na psicologia, o gestaltismo - Koffka, Koehler e Wertheimer, com o conceito de Figura-Fundo - constitui uma nítida demarcação: a possibilidade de apreender a globalidade. O próprio contextuamento do que acontece e do percebedor, na relação, estabelece os níveis de percepção e, consequentemente, o pensamento e a vivência dos fenômenos.
Quando se percebe a totalidade como parte de outra totalidade, de outra unidade, cria-se uma distorção perceptiva. É como se a lei da melhor direção (fig.A) não se cumprisse por interferência de fatores de semelhança (fig.B):
Um exemplo claro disso se deu quando o subjetivo e o objetivo foram considerados complementares, restauradores da unidade humana. Essa distorção parte/todo criou o dualismo clássico das ciências humanas, no qual o homem é visto ora em seu aspecto subjetivo, ora em seu aspecto objetivo, de uma maneira excludente, antagônica ou complementar.
O mesmo ocorre na teoria do conhecimento. O mesmo ocorre no dia a dia, quando pensamos que o inferno ou o paraíso são os outros.
Para falarmos em complementaridade, antagonismos ou polaridades, estamos pressupondo contextos, totalidades. Devemos enfocar esses pólos, complementariedades e antagonismos como partes que têm de ser percebidas a partir do todo, contexto delas configurador. Em nosso caso, falar em sujeito e objeto como polaridade pressupõe a totalidade essência humana.
Claro que em outros contextos essa totalidade, essência humana, pode ser uma parte. E nesse sentido talvez estejamos com uma visão parcializada. Exemplo: se estivermos enfocando a totalidade cósmica, a essência humana seria uma parte e já se constitui distorção transformá-la em uma unidade possibilitadora de resultantes. É importante salientar que, do ponto de vista psicológico - o homem enquanto transcendência à sua dimensão orgânica - tudo começa e acaba na percepção, ela é o contexto a partir do qual pensamos, entendemos, amamos, odiamos, aceitamos, não aceitamos os limites do estar no mundo.
Tudo que é psicológico, comportamental, resulta da percepção. As próprias relações estabelecidas consigo mesmo, com nossa estrutura orgânica, se fazem no contexto relacional perceptivo e é por meio da própria percepção que vão se estabelecendo os níveis de existência do ser.
Esses níveis estabelecem-se enquanto sobrevivência, função, imanência e enquanto existência, contemplação, transcendência.
Segundo os gestaltistas, toda percepção se dá em termos de Figura-Fundo - e existe uma reversibilidade, isto é, a Figura vira Fundo e o Fundo vira Figura - mas o que é percebido é o Figural. Sendo o percebido a Figura, poderemos sinonimizar a percepção como compreensão da manifestação, como o equivalente à manifestação, explicitação, expressão. Isso necessariamente suporia o implícito, o sutil, o não manifestado e até mesmo oculto. Nesse sentido dá para entender, sem dualismos, o que seriam os níveis de manifestação e os do que se oculta.
A bem dizer, toda uma problemática secular entre idealismo e materialismo, material e espiritual, denso e sutil, oculto e manifesto, poderia ser entendida em termos de Figura-Fundo. A ideia de que o ser humano pode transcender o nível de sobrevivência, atingindo o contemplativo-existencial, é a própria ideia de mudança. É a única maneira de exercer a liberdade transcendendo seus limites constituintes e atingindo dimensões humanizantes, ocultas, não explicitadas ou empanadas pelas lutas de sobrevivência. É o equivalente da passagem do engatinhar para o andar. É a autonomia em relação aos limites definidores. É quando eu quebro os posicionamentos de sujeito e objeto, estando aqui e agora comigo e assim também com o outro. Consigo, desse modo, a interação de uma dimensão contemplativa, o que me possibilita disponibilidade responsável pela infinita reversibilidade e pela apreensão contínua e encadeada da Figura nas sucessivas transformações e relações Figura-Fundo. Integro-me. Não coagulo posicionamentos, não autorreferencio, estou com o outro e comigo assim no mundo. Esse estado de não compromisso é o que viabiliza a liberdade, que nada mais é do que o exercício das possibilidades humanas. Para exercer liberdade é fundamental não estar limitado, sequer à própria percepção. Isso só ocorre no nível existencial, onde o deslizamento configura o exercício da possibilidade do existir. Enquanto nos detivermos e nos apegarmos aos resultados, frutos de nossos trabalhos e empreendimentos, estaremos misturando referenciais e nos dedicando às polaridades. Assim, alcançaremos realizações, mas ao preço de nos exilarmos de nossa totalidade e unidade definidoras.
Acontece que vivemos dentro de limites, desde o da idade, o tempo físico, até o espaço açambarcado. É por isso que se dedicar, contemplar cria o infinito e resgata a totalidade aprisionada. Um exemplo simples pode ser visto quando percebemos que não temos um problema, mas sim que somos um problema. Dedicarmo-nos a esse questionamento, ou seja, por que somos problema, em vez de querermos a solução de como deixar de ser problema, é ampliador, diversificador e transformador de nossa percepção, de nosso relacionamento, de nosso comportamento.
[Extraido do livro "Terra e Ouro são Iguais ", pags.19,20,21,22]
Após a leitura desse texto, fica fácil configurar a distorção perceptiva, o erro de Perls: ele jamais abriu mão da ideia de realidade interna e de realidade externa, pois apesar de gestalt ser, para ele, uma palavra indicativa/significativa de totalidade, a totalidade era apreendida em contexto elementarista de inconsciente, meta, instinto, fazendo com que o todo (a totalidade) para ele fosse a soma das partes. Não é por acaso que seus seguidores falam em "abre gestalt, fecha gestalt".
- Vera Felicidade -
agosto de 1996
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