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Paixão, Glória e Crucificação de Menininha do Gantois

A questão da folclorização e apropriação política de lideranças negras religiosas ocasionou posicionamentos meus, expressos no artigo “Paixão, Glória e Crucificação de Menininha do Gantois”, publicado no Jornal A TARDE em 22 de agosto de 1986.




A TARDE

Sexta-feira, 22 de agosto de 1986


Paixão, Glória e Crucificação de Menininha do Gantois



por Vera Felicidade (x)



“A Oxum mais bonita, a amiga de Carybé e Jorge Amado, do ministro Antônio Carlos Magalhães, mãe de Gal, Bethânia e Caetano”, a que rezou pelo articulista José Berbert de Castro (na homenagem à sua morte, ele conta, em artigo publicado na TARDE de 15 de agosto de 1986, essa historinha), ou a que “na sua juventude teve formação cristã e católica que marcou muito sua vida, pedindo a Deus que a receba com sua benevolência de paz”, conforme declarou à imprensa D. Avelar, ou ainda a que padre Hélio Rocha “soube que confessava e comungava. Por isso, eu não vou jogar pedra na minha irmã na última hora”, era nada mais nada menos que um dos grandes baluartes remanescentes de uma religião, de uma tradição, de uma cultura. Era descendente de africanos, que infelizmente sempre foram vistos, em nosso contexto cultural e social, como filhos e netos de escravos, pretos, pobres, incultos, primitivos, animistas. (Animismo é uma expressão divulgada e muito usada pelo antropólogo Nina Rodrigues, bastante determinista e preconceituoso na visualização e estudo das etnias, coisa sempre por ele feita através de uma teoria de classe determinista e elementarista).


Nessa ótica, com todas essas motivações preconceituosas, fica implícito que Menininha do Gantois era uma pobre negra, bondosa, que mereceu homenagens, pois a nossa cidade é mística, espiritual, turística e folclórica. Corroborando isso, convém pinçar as pérolas esparsas do discurso do Senador Nelson Carneiro, proferido no senado federal no dia 14 de agosto de 1986: “Menininha do Gantois deixou uma grande lição de humanidade e a certeza de que na Bahia os credos religiosos são praticados livremente, contribuindo, inclusive, para atrair turistas à Bahia. Que Mãe Menininha contribuiu para os estudos antropológicos, com isso enriquecendo a cultura brasileira, em especial os problemas da raça e das religiões negras na Bahia”.


Anos atrás Menininha do Gantois era vítima de discriminação racial, de preconceitos, tanto quanto hoje, só que naqueles idos os mecanismos eram diferentes. Ela foi presa e, com atabaques na mão, protestava e bradava pelo direito de tocar para seus Orixás, de zelar pelo seu culto, mantendo a tradição recebida de seus avós.


Hoje, por ocasião de sua morte, de novo ela é vitimada. Seu terreiro é invadido e profanado por crucifixos, marcas de uma religião que ela adotou, como todo negro o fez, dada a submissão, a subserviência que tinha de ser exercida para salvar a pele, para salvar a sua religião em última análise.


Até 1976, qualquer terreiro de candomblé desta mui negra e acolhedora cidade só batia, só recebia seus Orixás, só comemorava seus cultos se houvesse uma licença oficial da polícia.


A memória desses fatos mostra toda a opressão e descaracterização que o povo africano sofreu. Tivemos outros contingentes imigratórios: espanhóis, italianos, judeus etc. mas eles não foram escravos, eram brancos, sempre foram vistos como melhor etnia, melhor cultura, não eram pretos, não nos lameavam, não nos envergonhavam. Tão divulgados e falados foram esses critérios preconceituosos, despersonalizantes e massificantes que o próprio negro os integrou e hoje ele pede desculpas e ainda agradece de mil modos o ser aceito, o ser considerado, o ser admitido como gente; não é à toa que lemos em A TARDE de 19 de agosto de 1986, por ocasião do convite para missa de sétimo dia para Menininha do Gantois, agradecimentos do Egbé Oxossi ao presidente da República, às autoridades e à polícia. Inversão de valores, despersonalização, submissão, restos de servilismo: a Bahia, as autoridades é que devem agradecer, e não joão e marias situados e realizados através das homenagens recebidas, discriminados e comovidos pelo direito à missa no Rosário dos Pretos, sem nem sequer aspirarem uma missa - já que missa queriam - na capital basílica, onde ouro e Oxum não destoariam, pois ele é um dos seus elementos.


Consciências lúcidas são necessariamente consciências críticas. Não somos ingênuos em acreditar que preconceitos arraigados, seculares e frutos de colonizações espoliadoras sejam subitamente mudados. A luta pela individualidade de um ser, de uma cultura exige questionamentos, cria antíteses, descartadas pelas opressões massificantes, mas que se constituem em sementes. Daí este artigo, esta colocação de coisas. Que se pense, que se perceba, que a essência de D. Menininha do Gantois seja apreendida como tal e não através de suas aderências contingentes, folclóricas e preconceituosas.


(x) Vera Felicidade é psicoterapeuta gestaltista, autora dos livros “Psicoterapia Gestaltista Conceituações”, “Mudança e Psicoterapia Gestaltista” e “Individualidade, Questionamento e Psicoterapia Gestaltista” e Oni Kowe (dono dos escritos) do Ile Axé Opô Afonjá.

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