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Psicoterapia não se faz nos Terreiros



De 19 a 25 de agosto de 1982, foi realizado, no Rio de Janeiro, o XII Congresso Internacional de Psicoterapia. O Jornal do Brasil publicou matéria, no dia 19 de agosto, sobre a temática principal na pauta do congresso: a discussão e apoio ao emprego de práticas religiosas como alternativa à psicoterapia para a população financeiramente carente. O título da reportagem era "Congresso de Psicoterapia busca alternativas nas práticas populares religiosas", Jornal do Brasil, 19 de agosto de 1982, Caderno B, p.8.


Na reportagem, vários psiquiatras se posicionaram a favor destas alternativas religiosas, como Umbanda, Espiritismo, Candomblé e outras práticas espirituais como substitutas de psicoterapias no tratamento de transtornos do comportamento. Os argumentos em favor destas alternativas eram, basicamente: classes financeiramente desfavorecidas não têm como arcar com os preços de psicoterapias; psicoterapeutas desconhecem a cultura popular e não dispõem de linguagem comum com estas classes para levar a cabo o tratamento (psicoterapia como prática elitista); "pobres" são diferentes de "ricos" nas somatizações de problemas psicológicos (pobres têm paralisias, desmaios, diarréias, dores de cabeça e cólicas, por exemplo, e os ricos têm hipertensão e infarto [sic]). A reportagem é conclusiva no apoio a esta substituição, citando psiquiatras participantes do congresso e suas justificativas classificatórias do humano.


Discordo da proposta desse Congresso



Discordando dessa proposta resolvi escrever ao Jornal do Brasil, me posicionando contra esta nova tendência na prática psicoterápica. Minha crítica à introdução de práticas religiosas ou espiritualistas no campo da psicoterapia, foi, então, publicada no Jornal do Brasil, um mês depois da reportagem sobre o congresso. Segue transcrita abaixo.



Jornal do Brasil


Domingo, 19 de setembro de 1982

- por Vera Felicidade de Almeida Campos -


Psicoterapia não se faz nos terreiros



Psicoterapias só podem ser entendidas e realizadas dentro de referências psicológicas que permitam respostas ao que é o homem, seu comportamento, sua distorção, sua neurose, seu ajuste/desajuste, sua transformação. Não acredito que psicoterapias fundamentadas na busca de ajuda ao homem, sem nem sequer conhecê-lo, configurá-lo relacional e conceitualmente, consigam nada mais do que seria conseguido por uma obra assistencial ou um governo socializante, democrático, ou por um apoio amigo, ou uma palavra encorajadora, ou uma viabilização econômica.


Acontece que, antes de ajudar o homem, precisamos conhecê-lo, entender, configurar o porquê de sua "doença", de sua neurose, de seu desajuste, de sua alienação, despersonalização, desindividualização. Isto é um ponto crucial, pois divide as psicoterapias, a depender de suas fundamentações conceituais, em psicoterapias de apoio, ajuste, e psicoterapias de individualização, transformação.


A visualização do humano através de categorias sociais, culturais e econômicas (baixa-renda, alta-renda) - principais justificativas alegadas para a utilização das práticas populares religiosas como alternativa psicoterápica - é um dos melhores instrumentos de massificação criados pelo sistema para a tipificação do humano, respaldado na dita "ciência social". Não há o rico, o pobre, o analfabeto, o letrado, como constituintes intrínsecos do humano. Isto são aderências, atributos originados de contingências. Há o indivíduo, que se não se aceita, não aceita sua realidade, não vivencia o seu presente, tornando-se, portanto, presa fácil de sistemas econômicos, culturais, religiosos e psicológicos que acenem com o melhor, com a vida eterna, com o ajuste, com a tranquilidade.


Nosso sistema social, cultural, econômico é massificante, alienante, nossas instituições, nossa ciência, como super-estrutura do mesmo, via de regra, como maioria representativa deste sistema, tem objetivos pragmáticos despersonalizantes, massificantes, pois caem na armadilha de querer resolver sem saber qual o problema, esquecendo que, para atingir a solução, basta se dedicar ao problema - daí que cada vez mais se constituem em baluartes dos sistemas, ajudando-os na despersonalização, na descaracterização do humano.


Como psicoteraputas devemos, antes de propor soluções, de arregimentar alternativas, descobrir os núcleos desindividualizantes, neurotizantes e contra eles cerrar fileiras, abrir o fogo. Tréguas são adiamentos, sedativos que possibilitam novas guerras. A solução de compromisso, o meio-termo, apenas piora, pois, já partindo de verdades escamoteadas, vende uma dourada pílula que a muitos fascina, alienando da psicoterapia e da religião. Como psicoterapeutas não podemos aceitar estas alternativas das práticas religiosas populares ao nível de psicoterapia: seria uma maneira de esconder, driblar a nossa falencia, a nossa impotência em configurar o humano. Tanto quanto, acredito que Babalorixás, Iyalorixás, Umbandistas e Espíritas, como pessoas dedicadas a realidades transcendentais, não aceitem solucionar massificações e injustiças sociais, mas há um risco, pois a pílula dourada que lhes está sendo servida, já os despersonaliza e agride em suas crenças básicas.


Quando eles curam, tratam os desajustes, perturbações, transtornos mentais, eles o conseguem por acreditar que aquilo resulta da ação de afastar os invisíveis, as forças maléficas, as entidades do além que insistem em voltar etc. Não estão pensando em utilizar a sugestão, nem seus poderes para remover núcleos histéricos, suprir a falta de motivação, resolver não aceitação. Eles não precisam que lhes outorguemos licença para tratar, são fenômenos distintos, realidades nas quais eles são totalmente autônomos. Ou será que quando se pensou nas alternativas das práticas religiosas, se começou a acreditar nos invisíveis, nas forças maléficas, nos espíritos? Mesmo assim, é absurda a capitalização que se está tentando fazer.


Enfim, a busca de alternativas psicoterápicas, na prática faz o jogo do sistema, despersonaliza, desindividualiza, seda a insuficiência conceitual das psicoterapias, da psicologia, da psiquiatria e utiliza o que ainda há de vivo no homem: a sua fé, a sua crença, ensejando deslocamentos na busca de instrumentos de salvação para enfrentar a impotência do existir, seja pela massificação reinante, seja pela coisificação da não aceitação criadora de distorção perceptiva, de neurose.


Temos que ajudar o homem, libertá-lo de seus medos e angustias, mas só o conseguiremos à medida que o transformemos ou individualizemos. A adaptação, a sedação, não é o caminho da reestruturação. Não se trata de solucionar, mas sim de conhecer o humano; tampouco devemos aprisioná-lo às suas crenças, mas sim possibilitar-lhe condições de transcendência, de humanização.


- Vera Felicidade de Almeida Campos é psicóloga, formada pela URFJ, psicoterapeuta gestaltista, escreveu os livros "Mudança e Psicoterapia Gestaltista" (Zahar) e "Psicoterapia Gestaltista - Conceituações" (do Autor). Baiana, tem 40 anos e mora em Salvador (BA

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