- por Nadja Miranda -
"Individualidade, Questionamento e Psicoterapia Gestaltista" é o terceiro livro da psicóloga Vera Felicidade de Almeida Campos, baiana, 41 anos, que transpôs as fundamentações, as conceituações da Psicologia Gestaltista para a área psicoterápica, criando assim a Psicoterapia Gestaltista, trabalho descrito nos seus dois livros anteriores e que é uma antítese a todas as outras visões psicoterápicas. Num momento crítico como o de hoje, quando a massificação transforma o ser humano em mais uma coisa sobrevivente, falar de individualidade, de questionamento é denunciar papéis, regras, valores que nos orientam alienadamente. "Neurose é não-aceitação da realidade. A cura é a vivência do presente", ponto de partida do trabalho de Vera Felicidade, que busca a estruturação do ser humano, a sua individualização. Desde que em 1973 editou "Psicoterapia Gestaltista - Conceituações", seu propósito foi o "de instalar na psicologia uma visão divergente das atuais. Um propósito científico. Neste sentido, não estamos escrevendo um livro, mas sim uma tese". À edição, hoje esgotada deste primeiro livro, seguiu-se em 1978 "Mudança e Psicoterapia Gestaltista", reafirmando mais uma vez, suas ideias inovadoras e seu propósito de questionamento, em lugar da atitude de apoio, característica das demais psicoterapias.
O resultado do seu mais recente trabalho, editado pela Alhambra e já nas livrarias, deixou a psicóloga "muito contente", como ela mesma declara no prefácio "em conseguir conceituar a questão da individualidade dentro da psicoterapia gestaltista, tanto quanto em ter deixado bem claro e explícito o problema do símbolo como distorção perceptiva, abrangendo, assim, todo contexto humano mssificante e estruturante da despersonalização, da neurose".
Livre pensadora, a psicoterapeuta dá continuidade aos seus propósitos científicos à margem do sistema que, justamente, não absorveu suas ideias pelo que ela têm de revolução ao que aí está estabelecido. Este fato, no entanto, não impede que seu trabalho se realize bem, ao longo destes últimos 17 anos.
"Individualidade, Questionamento e Psicoterapia Gestaltista" foi escrito em 1982, quando ela começou a estruturar planos de aula para um curso de extensão na UFBa, a pedido de um grupo de alunos e professores. Não estando, por conseguinte, incluída no programa do Departamento de Psicologia, a Psicoterapia Gestaltista, em Salvador, se difunde assim, embora estas não sejam preocupações da psicóloga. O livro irá interessar a todo aquele preocupado com a problemática do humano, leigos ou profissionais, desde que seu conteúdo revela que o estar no mundo pode ser outra coisa diferente da alimentação de neuroses, da despersonalização, ao nos mostrar como podemos e é fácil a individualização. Quando começamos a entrevista, apesar da empolgação pelas ideias de Vera Felicidade, duvidávamos de sua participação nas coisas. Talvez por informações tipo "torre de marfim", elitismo, preços de terapia. Passamos a falar da realidade baiana, greve de professores, tombamento da Casa Branca e, evidentemente, de neurose e Psicoterapia Gestaltista. Diante de tudo isto ficamos supresos com a atualidade, entrosamento e participação da psicoterapeuta e vimos que nossa empolgação não era vã.
Reporter: Você chama o inconsciente, condicionamento, hábito, adaptação, normalidade, anormalidade, conceitos de outras psicologias, de aberrações conceituais, chaves mestras. A Gestalt não teria suas chaves mestras?
Vera Felicidade: Claro que tem! É a relação com o outro. Porque quando um cliente chega aqui destilando a neurose, seus estereótipos, a priori, sua massificação, me insurjo contra isto. Digo não à massificação propondo que ele procure um apoio, pois o que ele quer na vida é conseguir viabilizar; muito justo dentro do referencial dele, mas muito distorcido, massificado, num certo sentido, sem ter a ver com a proposição gestaltista de mudança. É o impacto. Ele muda, desiste de ser aquela vítima degradada, a buscar soluções e fica em pé, buscando seus caminhos de ser humano. Essa é uma das essencias da Teoria Gestaltista: a transformação daquele alienado ser queixoso, verme parasitário que quer se dar bem, em um ser no mundo aberto a todas as possibilidades que o constituem e que ele lidava mal por não saber, por transformar estas possibilidades em moeda de troca, ratificadora de sua coisificação. Trabalhamos com antíteses, delas não temos dúvidas, isso choca, mas individualiza.
Reporter: caso contrário...
Vera Felicidade: O cliente desiste e busca o psicanalista, o padre, a mãe-de-santo, seus amigos, apoios que afaguem seus sonhos, que recebem sua omissão e apostam na sua fantasia, acreditando que ela o resgata, tanto quanto o aliena.
Reporter: E os que não chegam aqui para fazer terapia? Afinal o privilégio é de pouquíssimos, o que fariam para a estruturação, humanização?
Vera Felicidade: Seria através da autenticidade de ser com o outro no aqui e agora. Psicoterapia Gestaltista não é solução, nem saída do sistema. Quando se está mal, procura-se o analista ou o psicoterapeuta gestaltista. Não posso me pousar como solução de vida para os neuróticos. As pessoas querem ajuste, não querem se transformar, não se trata de solucionar, é problematizar como já lhe disse.
Reporter: Como é que a neurose é sempre, conforme você diz, uma não aceitação da realidade? Por que os neuróticos querem o ajuste? não querem a transformação?
Vera Felicidade: Porque você sempre conta com um depois, que pode ser sua expectativa, sua clareza, sua lucidez, sua superstição, suas necessidades, sua crença, o milagre, enfim. O que deveria acontecer e o que precisa acontecer, o que você acha que tem que acontecer. A necessidade sempre encaminha a solução e a gente sempre aposta nela. É o querer? Talvez o precisar? O tem que ser isto porque se for de outra forma não sei como ficarei? "Deus que me ajude! Acredito nisso?"- A própria crença é massificada quando se trata de solução. Insistimos: a única maneira de resolver o problema é enfrentando-o. Para isto, a dedicação, a disponibilidade alijam quaisquer crenças ou esperanças!
Reporter: Fora disso não há salvação?
Vera Felicidade: Não se trata de salvação, não há lugar para milagres! Apenas para a vivência da realidade, que em si é integradora, reveladora, questionante e portanto milagrosa. Neste sentido o Gestaltismo é muito Buddha, revelador, talvez até ''Blow-Up" (que é revelação, né?) entcontro, trnsformação, ou, como diriam os africanos, "sempre quem cuida de você é o seu ori" (cabeça). Em outras palavras, seu caminho não é o do meio, está em você mesmo à medida que você configure suas contradições integradoras, não se espantando com as integrações que elas constituem.
Reporter: Então o deus é a realidade?
Vera Felicidade: Sim e não. Depende de como você integre e de como você escamoteie, camufle. Husserl já dizia: o aparente é o real. Como brincar/lidar com isso? Vivendo - para os autênticos - que é diferente de sobrevivência inautêntica guiada pelas necessidades, desejos e planos/metas; ou partindo para a Terapia Gestaltista à medida que se consiga não onipotentemente, consumativa e prazeirosamente, por entre parêntesis, destacar-se das benesses e catástrofes do sistema.
Reporter: Já que você falou em milagre, religião, africanos, como vê o ato do tombamento do terreiro da Casa Branca, agora incorporado pelo SPHAN, primeiro monumento negro tombado no Brasil?
Vera Felicidade: É uma imposição da relaidade. Até que ponto é um simples ato de justiça ou uma questão de política? Trocando em miúdos: reconhecemos nossa influência negra? nos curvamos a ela? ou precisamos nos dar bem com ela, considerando-a? A votação do SPHAN é eloquente: três a favor, dois contra, duas abstenções e um voto nulo, é o retrato do Brasil. Cento e poucos anos depois da abolição da escravatura, preconceitos colonialistas ainda continuam. Ganhou o negro? ou a abertura branca se fez eloquente através do reconhecimento de suas origens constituintes? Importante enquanto consenso, política de massas, aberturas de novos espaços, nada individualizante, apenas um detalhe, pois o candomblé prescinde dele. Essências reconhecidas ou espacializadas? Que proveito se tirará disso? ou que bandeira de luta isso alicerçará? A história responderá, embora ela nada constitua, mas tudo esclareça. Lideres ou guindastes atuam? Movimento de massificação ou de individualização?
De outro modo, de que adianta para o africano, seus descendentes, serem reconhecidos na constituição de uma imanência brasileira quando eles são negados como individualizantes/individualizados? Quilombos? MNU? ou um ser humano como qualquer outro que viva nesse caos/cosmos, geléia geral brasileira, sem vozes e sem palmares, com muitos zumbis, mas com a esperança geral no berço adormecido? Vamos à luta? ou somos reconhecidos? O novo espaço que se abre com o tombamento deverá ser uma proposição de luta e não um acalanto para as contradições que nos constituiram/constituem.
Reporter: Depois de tanta coisa, já sabendo que é uma contingência, o que você acha da greve dos professores universitários? Ou mais amplamente dos movimentos grevistas que estão eclodindo no país como um todo?
Vera Felicidade: É o problema da autenticidade e da não autenticidade. Trabalho feito em nível de sobrevivência ou transcendência. Para sobreviver, tudo é válido: as greves, os oportunismos, os jeitinhos, caos social, melhoria de salários, composições de força, o jeitinho brasileiro, o oportunismo baiano. Quando se trata de existência autêntica e autodeterminada, só um questionamento autodeterminado e uma solução autêntica existencial, resolvem. Chegamos ao ponto básico da Psicoterapia Gestaltista. Havendo problema, existe a solução. O deslocamento, a neurose consiste em buscar a solução ao invés de se deter no problema.
Reporter: Exemplifique...
Vera Felicidade: Reivindicações de melhores salários, busca de melhores condições de vida, procura de um grande amor, nada mais são que deslocamentos de não aceitação da realidade contraditória de ser explorado e aceitar as condições que se tem, as necessidades não-aplacadas.
Reporter: Mas isso não é conformismo? Assim, o Gestaltismo não seria uma proposta de alienação do humano?
Vera Felicidade: Não, de jeito nenhum, você não está me entendendo!!! Considere as enormes exigências massificadoras e massificantes. A aspiração do humano é por melhores condições de vida, o que já trai e supõe uma ordem quantitativa açambarcada. Ter mais, conseguir, em lugar de ser. Na realidade não propomos a alienação ao sistema, não propomos conchavos com ele, mas sim mudanças, num certo sentido, subverção a ele. Toda reivindicação é justa desde que esclareça, é uma resultante da dialítica senhor X escravo, conforme Hegel já falava. Mas por que isso? Até que ponto não é deslocamento? Porque todas estas forças não estão sendo guindadas dentro de uma polarização de autenticidade. O questionamento do ser, ao ser feito de uma maneira hedônica, embora o aplaque, achata-o. O que apóia, oprime, em outras palavras, o patrão que explora é o que mata a fome.
Reporter: E aí não se deve reivindicar? Você é contra?
Vera Felicidade: Pois o que é o ser no mundo? Um reivindicante? Um constituinte? Constituído situacional à mercê das benesses? De novo shakspeare: ser ou não ser, eis a questão! Em resumo: conseguimos; mas não mudamos, ganhamos novos espaços; mas onde fica a defasagem do eu aqui e os outros ali e o sistema? Como quebrar com ele? - Virando a mesa? Sendo infantil, anárquico? Qual o maduro? (Qual a atitude madura?) Individualizante? As mudanças qualitativas, sem dúvida.
Reporter: Ah! entendi, o fundamental não é o que se tem, é o que se é, o que individualiza?
Vera Felicidade: Que greve foi feita neste sentido? - Nenhuma. Em toda história da civilização buscou-se o melhor, o mais aliviante, o mais distensionante, o minorante, por isso aí, as minorias agora têm vez. Houve alguma vez uma greve, um movimento para mais individualização? - Nunca, pois sempre se partiu da posição explorador X explorado, senhor X escaravo, mais gente ao meu favor, meu pedaço. O que urge é uma mudança de valores, assunção de estar no mundo com todas as possibilidades sem submissão às minhas necessidades e tendo que barganhar por elas. O amante sempre salva o casamento à medida que ele descobre e revela. O recôndito do Ser é terra que ninguém passeia, mas onde todos se encontram. A barganha, o blefe, a aposta, o que dignifica e insinua?
Reporter: Que recursos os terapeutas gestaltistas têm contra tudo isto?
Vera Felicidade: A massificação, o não ser? Não. Nós terapeutas gestaltistas não dispomos de recursos tais como: projeção, luta de classes, transferências, inconsciente. Não ficamos perplexos desde que temos a lucidez de busca/encontro da autenticidade, característica do humano. Mas, num certo sentido, nos alienamos do chamanento, da mobilização, das vogas/modas.
Reporter: E daí? que fazer?
Vera Felicidade: Fullgaz (da Marina), TV Globo, buscar a melhor? promover-se? situar-se? posicionar-se? lutar pelo seu pedaço? Virar a mesa? Compreender tudo isso? Bala na cabeça? ou simplesmente, como diria o poeta? "um gesto vão ao que não alcanças", em outro sentido: alienar-se? - Não! Manter-se lúcido, não esquecer das fontes onde bebemos a água da nossa cultura. Sísifo, Kafka num certo sentido, o desespero levado às últimas consequências que pode até ser a greve - para falar das imanências contingentes da realidade brasileira -, ou uma terapia gestaltista no sentido de uma individualização.
Reporter: Por lucidez, então seria...
Vera Felicidade: O mais ou menos, o meio termo, o morno do confortável, o ajuste, o "isto é melhor pra mim", "assim vou solucionar minha vida e por isto estou nesta" são proibidos por fundamentos, bases e princípios, mas também por isso é proibido proibir. Mas, por lucidez é necessário configurar onde começa e acaba o problema, o ponto do desespero, eis a questão! O polarizante não é açambarcador; que não se iludam os parcializadores. A história esclarece e a vida continua.
Reporter: E nós estamos aqui? Os gurus?
Vera Felicidade: Neste sentido a vida continua e nós estamos aqui. Não como gurus, nem consciência cósmica que a tudo redime e esclarece, mas como terapeutas, seres no mundo, possibilidades transcendentes de todas as aberrações convergentes e polarizantes às quais se disse não, por se saber o sim do estar no mundo. Seres abertos a todas as implicações e questionamentos do estar-aqui-e-agora-com-o-outro, sem nada e com tudo.
Reporter: Como você vê todos estes modismos, que embora não sejam novos, ressurgem hoje como salvação para o homem - bio-energética, novos espaços, movimentos negro, gay, feministas, naturalismos, e tudo mais?
Vera Felicidade: Busca desesperada do ser humano por ajuste e distensionamento. Ilhas do sistema... é preciso criar oásis. As ideologias, a publicidade, a TV Globo, mídias, a supra estrutura estão aí para isto. Na Física, as ilusões de ótica explicam esses deslocamentos. "A vida é curta, curta a vida", "considere seu karma", precisamos de soluções, os paus-de-sebo existem, os mais aptos atingem. Treinem-se, cuidem-se, resolvam-se; a solução está nos cereais! Exorcizem-se! Abaixo o açucar e viva feliz! É o pau-de-sebo, a disciplina, o auto controle partindo sempre do extríseco, do milagre, a solução dada pelo outro. (nesta linha de pensamento) Basta capacitar-se, seguir, que tudo se resolve. O rebanho permanece, consequentemente a desindividualização. "Ser gay é bom! Pode ganhar um premio Nobel. Organizem-se, mulheres e negros alforriados, de algemas quebradas, situem-se, posicionem-se! Criem seus espaços!"
Vera Felicidade: Tudo isto não é o padrão? o valor? o modelo? a busca de um lugar ao sol? todos somos indivíduos, brancos, amarelos, negros, homens, mulheres, gays, pobres, ricos, cultos, incultos. Somos gente. Só isto, que quando visto e integrado significa, pouco importando "os assim", as trajetórias, vitórias ou fracassos. Náufragos precisam de olhas. O sistema as controe, novas polis surgem e assim reciclam as massificações.
Reporter: Ah! É por isso que tem agora as revistinhas pornogays né? e também por isso que "Malu Mulher" atrai muitas divisas na nossa quota de esportações e também os naturalistas vendem os chocolates naturais?
Vera Felicidade: Exatamente, você apreendeu a essência.
Reporter: E por que o Gestaltismo não é isso?
Vera Felicidade: Pela própria proposição de autonomia, de auto determinação. O que o terapeuta propõe ao cliente é a cura, isto é, a vivência do presente, a dispensa do terapeuta. No fundo a gente explica porque não se está bem, não se está satisfeito e feliz, mas não como chegar à felicidade, ao bem estar, pois isso é critério próprio e para o terapeuta gestaltista basta que alguém se aceite, que o mundo é seu. Mas, quando isto não acontece, a gente questiona, encaminha, faz terapia, é terapeuta geststaltista.
Reporter: Quer dizer então que o terapeuta limpa? isso não é meio Rousseau? O homem é bom por natureza e a sociedade o degrada?
Vera Felicidade: Rousseau era aristotélico no fundo ele pensava, trabalhava, lidava com a natureza humana, não trabalhava com a dialética, com as contradições. Tinha um a priori - o homem era bom. Nós trabalhamos com o movimento, polarizamos, antitetizamos, o homem não é bom, nem mau, é homem! Não se trata de adjetivos, valores, mas sim de realidades constitutivas, imanências constituintes, substantivos ser-no-mundo-com-os-outros-aqui-e-agora-antes-depois-além, não mais, assim de qualquer jeito, sempre, nunca mais.